terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Antologia Tomos fantásticos

Tomos fantásticos é uma coletânea temática de contos e histórias em quadrinhos editada pela 9Bravos. O objetivo é oferecer uma oportunidade a novos e promissores autores, de forma que eles possam publicar junto com autores experimentados que serão convidados.
O espaço não se limita aos contos, mas também para as HQs curtas, oferecendo uma espaço a roteiristas e quadrinistas.
O primeiro volume da Tomos Fantásticos possui como tema “Fantasia Medieval e Heróica” e você pode verificar a lista de contos e histórias em quadrinhos logo abaixo.
Contos
“A serpente e as pombas”, de Ana Lúcia Merege
“A cidade no fim de tudo”, de Ana Cristina Rodrigues
“Tirano”, de Carol Chiovatto
“Aliança improvável”, de Bruno Leandro
“A balada de Waren”, de Elsen Pontual
“O coração negro”, de Gian Danton
“Nobre sacrifício”, de Lucas Maziero
“O morro da Gruta Sussurante”, de A. Z. Cordenonsi

Saiba mais no site da 9Bravos

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Capítulo 2


Parte 3 - Pedro
Pedro estremeceu enquanto o pai se aproximava da porta. Não era normal que recebessem vistas àquela hora.
- Já estou indo. Calma que já estou indo. – disse o pai, arrastando os pés.
A porta abriu com um rangido. Uma figura enorme apareceu do outro lado. Pedro achou que fosse um monstro, ou um corcunda, e segurou nas mãos da mãe. Depois percebeu que, na verdade, era um homem com uma mala às costas. Vestia uma capa longa e preta e tinha um grande chapéu de couro, cujas abas desciam sobre seu rosto. Era um homem alto, forte, com uma barba rala e olhos azuis.
- Dá licença? Posso entrar? Sou um boticário de passagem por essas bandas e procuro pousada. Posso pagar por uma dormida e um pouco de comida. Já está começando a chover lá fora.
De fato, sua vestes já estavam úmidas e o chapéu se encurvara sob o peso leve de um pouco de água.
- Você nos deu um susto, homem. Não somos acostumados a receber visitas a essa hora.
- Eu não incomodaria, não fosse a chuva. Só peço um pouco de comida e lugar pra dormir.
O pai grunhiu, desconfiado:
- Só temos uma esteira.
- Durmo no chão, se me arranjar um pouco de palha.
- Pode dormir com o menino, então. Mulher, sirva um pouco de sopa para o homem. Aceita sopa?
- Quem sou eu para recusar? Num clima desses, uma sopa é tudo que um cristão pode pedir.
- Temos um pouco de vinho também. Não é muito, e não é bom. Vinho de pobre, parece lavagem, mas serve para matar a sede e é melhor que água, pois não dá doença.
- Meu senhor, eu não sei como me desculpar por estar lhe causando esse incômodo.
O pai grunhiu de novo, mas dessa vez foi menos severo. Estava começando a simpatizar com o forasteiro.
- Mal posso agradecer toda essa atenção. Só o que posso fazer é lhe deixar algumas moedas. Ou então, se quiserem, algum produto.
- Então o senhor é boticário? Nunca ouvi falar de boticário que andasse por aí, assim.
- Meu senhor, meu senhor... eu não sou homem de ficar parado. Não há lugar no mundo para mim, senão andando por esse mundão a fora, vendendo meus remédios e mais outras coisas que o senhor possa vir a precisar... – respondeu o forasteiro, sorvendo a sopa com grande barulho. Ah, mas essa sopa é um manjar dos deuses! O senhor me enganou, senhor...
- Sebastião. Meu nome é Sebastião. O senhor está dizendo que eu lhe enganei?
- Sim, isso mesmo. Disse que o vinho era lavagem, mas esse vinho é bom. Posso dizer isso porque já provei os mais variados vinhos, até mesmo os do novo continente. Tão bom quanto a sopa.
Com esse elogio, ele conquistou a atenção e a simpatia de todos. A mãe sentia-se orgulhosa por ter feito a sopa, e o pai por ter fabricado o vinho. Sempre acreditara que o vinho que produziam no sítio era ruim, coisa de camponeses, mas ali estava um homem experiente, que rodara o mundo e que elogia o seu vinho. O seu vinho!
- Então o senhor já foi ao novo mundo.
O forasteiro balançou a cabeça, afirmativamente.
- Fui sim, minha senhora. Já percorri quase todo o mundo conhecido.
Disse isso e tirou da roupa uma trouxinha amarrada ao pescoço por uma cordinha e beijou-a:
- Fui para lugares que a senhora nem imagina. Sempre que a proteção de nosso senhor, Jesus Cristo.
- O que é isso? – perguntou o pai.
- Isto? É um patuá! Fizeram para mim nas ilhas, antes de chegar ao Brasil.
- Coisa de negros...
- Aí é que o senhor se engana. É catolicíssimo esse patuá. Trago aqui dentro, nessa trouxinha de couro, uma oração pedindo a proteção de Cristo e Nossa Senhora... enquanto estiver com ele, estou de corpo fechado para todo o mau. Não há tiro que me acerte ou faca que me fure.
- Que oração é essa?
- Não posso dizer minha senhora, ou perco a proteção.
- Então o senhor deve guardar isso muito bem.
- Sem dúvida, trago debaixo da camisa, perto do peito. Nunca me separo desse patuá.
Pai e mãe ficaram refletindo sobre as maravilhas desse beato patuá.
- Mas fale, fale um pouco sobre o novo mundo.
- Oh, minha senhora, é a maravilha das maravilhas. Dizem que existe uma cidade em que todas as coisas são feitas de ouro. Tudo, até as jarras de água. Tudo feito de ouro. Chama-se Eldorado, essa cidade. Alguns falam que Eldorado seria o governante dessa cidade, um homem com tanto ouro no corpo que é impossível olhar para ele de dia, por causa dos raios do sol. Nessa cidade até os penicos são feitos de ouro!
O pai coçou a cabeça:
- Um penico de ouro?
- É o que ouvi dizer.
- Mas o senhor esteve nessa cidade?
- Não, meu senhor. Estar, nunca estive. Mas posso garantir que no Novo Mundo existe tanto ouro que até o mais pobre dos homens vira um rei do dia para noite. Até um guardador de porcos.
O pai cuspiu no chão.
- Até um guardador de porcos?
- Esteja certo disso. É uma terra de riquezas. Mas não é todos que querem ir para lá. Há índios selvagens, que comem gente.
Nisso a mãe se benzeu:
- Deus me livre e guarde.
- Eu nunca tive medo, pois tenho o meu patuá, mas o calor, não há patuá que livre a gente do calor. É um calor dos infernos. E o povo de lá têm costumes estranhos.
- Costumes estranhos?
- Sim, há até os que tomam banho todas as semanas!
- Cruz-credo! – fez a mãe.
- Costume de judeus! – concordou o pai.
- Estou lhe dizendo. São gente estranha, selvagem. Por sorte, nossos sacerdotes estão catequizando aquela gente. Mas agora que já terminei de comer, talvez queiram ver alguma coisa.
O homem soltou um arroto, levantou-se e foi pegar seu baú. Era um baú diferente, que se abria em quatro, revelando vários objetos presos por tiras de couro.
- Aqui tenho as mais variadas coisas, para as mais variadas necessidades. Vejam.
Pedro estendeu a mão e pegou em um bloco quadrado, de matéria macia. Parecia gordura, mas era mais sólido e tinha um cheiro estranho.
- O que é isso, senhor?
O pai deu-lhe um tapa na mão, reprimindo-o.
- Não mexa em nada, seu peste!
- Obrigado, senhor. Essa substância é cara e preciosa demais para ser tocada por crianças. Mesmo assim, irei satisfazer a curiosidade desse rapaz. Isto aqui, meu garoto, é sabão.
- Sabão?
- Sim, minha senhora. Uma substância tão cara que só vendo para condes e marqueses. Sabão, uma substância capaz de limpar qualquer coisa. Uma verdadeira preciosidade!
O olhar da mãe encheu-se de brilho:
- O senhor não tem medo de andar com isso por aí, por essas estradas perigosas?
- Minha senhora, meu patuá é capaz de me salvar de qualquer coisa. Não temo nada, a não ser a Deus! Estando com a proteção dele, não temo nada.
O pai balançou a cabeça:
- Muito certo, muito certo.
- E o que é esse vidrinho?
- Minha senhora, por favor, deixe isso no lugar. Isso é veneno.
- Veneno? Para que o senhor anda com veneno? E como o senhor sabe que é veneno? Os vidros são todos iguais.
- Minha senhora, se eu soubesse ler, escreveria veneno nesse frasco, mas não sei ler, então memorizei o lugar de cada um desses frascos. Se trocarem de lugar, posso vender veneno no lugar de um remédio.
- E por que o senhor anda por aí com veneno?
- Minha senhora, um grande alquimista disse que a diferença entre o remédio e o veneno é a quantidade. Provavelmente a senhora não sabe, mas muitos remédios são feitos de veneno. Mas em pequena quantidade. Sim, eu tenho grandes maravilhas aqui. Diga, meu nobre senhor... o que lhe incomoda? Com que fórmula mágica eu poderei pagar minha estada aqui?
O pai pareceu constrangido.
- Bem, a mulher diz que... como vou dizer... estou precisando, sabe?
- Vamos, diga o que o atormenta. Tenho remédio para todos males. Se for dor de dente, também posso arrancar alguns...
- Não, não é dente...
- Seria uma febre intermitente... tenho aqui...
- Não, não é febre... é algo mais...
- Vejo que o tema o incomoda. Seria um furúnculo, talvez?
- Não, nada de furúnculos.
- Doença de pele?
- Não, nem furúnculo, nem febre, nem doença de pele, nem tosse... é pum! Pronto, eu já disse: eu solto puns! Por mim, não me incomoda em nada, mas essa mulher diz que isso é doença, que tenho que me tratar... sabe como são as mulheres!
- Ah, o senhor sofre de gases! Por que não disse logo? Tenho aqui o remédio certo!
O pai pegou o vidrinho, desconfiado.
- Esse vidrinho vai curar os meus gases?
- O vidrinho não, mas o que tem dentro dele, sim. E pense como os franceses: são nos menores frascos que guardam os melhores perfumes.
- Se o senhor diz. Então está paga a sua estadia.
- Com uma singela refeição pela manhã, espero...
O pai olhou para a mãe e ela retornou o olhar, severa.
- Está bem. Amanhã o senhor come e vai embora...
Dito isso, levantou-se e anunciou que iam dormir. Não sabia o que lhe aconteceria.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Capítulo 2




PARTE 2
Aos poucos, passageiros e tripulantes foram subindo ao convés. Havia uma variada miríade de pessoas diferentes, com objetivos e desejos diferentes.
Além dos marujos Pedro e Jean-Pierre, havia outros, como Vital e Manuel. Vital era um marujo na casa dos trinta anos. Alegre, tentava levantar o moral dos colegas contando histórias sobre sua vida no Brasil, muitas das quais provavelmente eram inventadas. Manuel era um desastrado marinheiro, que fora padeiro antes de aventurar no mar e que revelara um gosto especial pela bebida, provavelmente por conta de um amor não realizado.
Rodrigo era o enérgico contramestre, que ficara misteriosamente cego.
Havia a viúva Luisa, uma mulher madura, de cabelos negros e olhar firme, capaz de qualquer coisa para conseguir seus objetivos. Outra mulher era Helena, a jovem mulher de branco, que passava a maior parte do tempo em sua cabine, recolhida e tímida.
Samuel era um judeu em viagem para o Brasil, provavelmente fugindo da perseguição aos judeus em Portugal.
Havia os padres, Milton, o mais velho, um inquisidor em visita ao Brasil para instalar ali um tribunal e seu ajudante, o jovem Agostinho.
Miguel e Francisco odiaram-se imediatamente.
Miguel tinha pouco mais de quarenta anos. Era um fazendeiro, dono de imensas plantações de cana no nordeste. Seu único assunto parecia ser seu engenho e sempre que ele pegava alguém desprevenido, podia passar horas falando do engenho como se fosse a única coisa no mundo.
Francisco vira nele tudo do qual ele conseguira escapar. Negro, ele chegara a ser escravo e, por sorte, conseguira fugir desse terrível destino.
- Estamos ali a civilizar os pobres índios e infelizes negros. São pobres coitados, que vivem em estado de miséria, como animais. Estamos fazendo um favor a esses pobres... – dizia ele para o Inquisidor, que balançava a cabeça afirmativamente.
- Estão é matando os negros! – gritou Francisco.
- Do que está falando, negro? – estranhou Miguel.
- Eu fui escravo no Brasil e sei muito bem o que fazem de verdade. É necessário sempre levar mais escravos porque os que estão lá morrem logo. Muito trabalho, pouca comida, muito chicote...
- Um chicote é tudo que eu queria ter agora, negro! Ia lhe dar uma boa lição!
Francisco fez uma careta e mostrou os dentes, como uma fera que tenta amedrontar seu oponente.
Provavelmente cairiam um sobre o outro, não fosse a intervenção de Agostinho.
- Não é hora de brigarmos entre nós. Não entendem? Estamos perdidos no meio do mar...
Miguel afastou-se, resmungando.
Com muita dificuldade, fizeram uma reunião no convés. Jean-Pierre e Pedro explicaram o estado em que estavam as provisões.
- Temos comida e água, é o que importa. – disse Miguel. Espero que nos sirvam nosso almoço.
- Acho que o branquelo não entendeu... – resmungou Francisco.
- Senhor, estamos à deriva. – disse Jean-Pierre. A viagem para o Brasil dura semanas. Já fizemos essa viagem antes e já aconteceu de não encontrarmos uma única nave no meio do caminho. Podemos passar meses no meio do mar... temos que economizar água e comida.
- E agora ninguém é escravo de ninguém. – atalhou Francisco.
Houve um principio de tumulto, logo abafado. Ao final, decidiram que Pedro e Jean-Pierre ficariam responsáveis pela comida e fariam o controle para que não faltasse.
Mas surgiu um outro problema. Onde estavam? Para onde estavam indo? Só o contramestre poderia ajudá-los.
Sentado no seu rolo de cordas, o contramestre fez uma careta, como se pudesse ver e perguntou:
- Onde nasce o sol?
- O sol nasce às suas costas. – respondeu Pedro.
- A proa fica à minha esquerda, certo?
- Sim, senhor.
- Então vamos na direção ao sul. É a pior rota. Na cabine de comando tem um leme e um cronômetro. Vão lá e voltem para me dizer.
Agostinho, que já se afeiçoara aos dois marinheiros, foi ajudá-los. A cabine estava semi-destruída. O cronômetro jazia em pedaços no chão. Pedro pegou no timão e girou-o. Não aconteceu nada. A corda estava solta.
Os três correram até o contramestre.
- Isso não é nada bom. Não mesmo. Sem o cronômetro não temos como saber a latitude. Na verdade, eu não sei nem mesmo se vocês poderiam calcular a longitude. Perdidos, perdidos... e o pior... o leme... a corda deve ter arrebentado e talvez não tenhamos nem leme... mas há uma chance. Normalmente é colocada uma corda para segurar o leme, caso ele se desprenda. Se alguém pular na água, pode tentar colocar o leme de volta no lugar...
Jean-Pierre estremeceu:
- Mas também pode morrer, ou se perder do navio...
O contramestre riu.
- Sim, isso é o mais certo. Desçam antes a Santa Bárbara e vejam se o timão desliza sobre o quadrante do leme. Se tiverem sorte, é aí o problema e arriscam-se menos.

sábado, 6 de dezembro de 2008

CAPÍTULO 2


No qual descobrimos algo mais sobre Pedro; um cachorro é morto; um estranho boticário bate à porta; os sobreviventes brigam entre si; um remédio faz estranho efeito e o leme é perdido.

Parte 1 - Pedro

Pedro lembrava-se de sua infância. Lembrava-se dos campos, da vida árdua, do cuidar das ovelhas.
Ele era ainda muito pequeno, e já trabalhava, cuidando as ovelhas. Seu pai trabalhava nos campos, plantando e colhendo, sol a sol. Tinham uma pequena roça, uma vaca, algumas galinhas e as ovelhas. Passavam quase que o dia todo na roça. A mãe levava comida para eles quando o sol começava a ficar mais forte.
- Meu pequeno Pedro. – dizia ela, acariciando o cabelo do menino, enquanto ele devorava a comida com as mãos. As lembranças eram antigas, como retratos que se apagam com o tempo, mas ainda assim Pedro conseguia, com grande esforço, rememorar o rosto da mãe, mas a imagem que vinha era sempre aquele quadro, ele olhando-a debaixo para cima, ele com as mãos sujas de gordura, e ela enorme, acariciando seu cabelo. Era uma imagem reconfortante.
- Coma tudo para ficar forte. – dizia ela, e ele comia tudo, lambendo o prato para não desperdiçar nem mesmo um único átimo da saborosa comida caseira.
À noite iam para casa e jantavam ao redor de uma mesa baixa, com um vela sobre uma garrafa. Era quando o pai contava as novidades.
- Mataram o cachorro do velho Alfredo. – disse o pai, limpando os lábios com as costas das mãos.
- Mataram o cachorro? Quem faria isso? Aquele cachorro já estava velho, deve ter morrido de velhice, meu marido.
- Não, mataram mesmo. Estriparam o bicho. O velho Alfredo me contou tudo, detalhe por detalhe. Ele acordou de manhã e chamou pelo bicho. Sabe como ele tinha amor naquele cachorro...
- Dizem que era um bom perdigueiro...
- Sim, por isso o vizinho o chamava de caçador. Coitado, ele acordava de manhã, saia pela porta, escarrava e chamava pelo cachorro. Isso antes de lavar o rosto ou comer alguma coisa. Era doido pelo bicho. Ele chamava e o bicho vinha, abanando o rabo. Mas ontem, ele chamou o caçador, mas ele não veio. Achou estranho, porque o bicho nem esperava ele chamar para aparecer. Se ele deixasse, dormia lá dentro...
- É surpreendente que ele não deixasse o cachorro dormir dentro de casa. Depois que ficou viúvo, o seu Alfredo ficou tão solitário...
- Ele se apegou ao cachorro. Dizia que os dois eram dois velhos, que tinham vivido o melhor da vida e que agora um fazia companhia para o outro. Mas estou me desviando da história. Como dizia, ele saiu pelo quintal, chamando pelo cachorro. Chamou aqui, chamou acolá, e nada do cachorro aparecer. ¨Eh, cachorro preguiçoso!¨, ele gritou, mas sabia que o cachorro não estava dormindo. Ele sempre acordava antes. Tinha que ter acontecido alguma coisa. Você já foi na casa do Alfredo e deve ter visto que tem um celeiro velho. Depois de procurar por toda o quintal, ele foi ver nesse celeiro. O cachorro estava lá.
- No celeiro? O cachorro dormiu no celeiro?
- Não. Deixa eu contar. O cachorro estava lá e estava gemendo. O vizinho pensou que ele estivesse morrendo, e chamou por ele. Estava muito escuro e o cachorro não respondia, só gemia. Ele abriu a porta e o celeiro se iluminou. O vizinho entrou, mas depois saiu vomitando.
- Vomitando?
- Sim. Ele vomitou até quase saírem as tripas. Depois criou coragem e entrou lá de novo. O cachorro estava deitado de barriga para cima, numa posição estranha. Havia um corte de cima a baixo, abrindo todo o peito e barriga dele.
- Meu bom Jesus!
- Alguém se deu ao trabalho de cortar o cachorro de cima a baixo... e não ficou satisfeito. Quem quer que seja o malvado, tirou o bucho do bicho. O bucho, o coração, o fígado... como um açougueiro, separando as carnes que vai dar para os pobres.
- Será que não foi o açougueiro? Já me disseram que eles fazem salsichas com carne de cachorro...
- Sei não. Se fosse o açougueiro, por que ele não levou a carne? Não, acho que foi maldade mesmo. Mataram bicho por matar. Sem mais nem mesmo. Só pelo prazer de matar...
- Ai, meu Deus, é o fim do mundo! Será que foi algum inimigo do seu Alfredo?
- E aquele velho lá tem inimigos? Não faz mal a uma mosca! Não, não foi nada disso... por mais que eu pense, não consigo pensar em outra coisa senão em maldade...
- Pode ser alguém querendo ficar com as terras do pobre. Matam o cachorro dele para assustar...
- Pois é. Pensei nisso. Pode ser. Vá saber.
Nisso bateram à porta.
- Quem será, a uma hora dessas?
Bateram de novo, insistentemente.
O pai se levantou.
- Vou abrir.
- Não, marido! Não abra!
- Deixe de besteiras, mulher... já vou abrir! Pare de bater!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Capítulo 1


Parte 3
Agostinho acordou no meio da noite, sobressaltado. Ele sonhara com coisas estranhas. Monstros de ferros passavam ao seu lado emitindo um piado agudo e correndo em uma linha reta. Pássaros barulhentos avançavam pelo ar. Havia fumaça, barulho e explosões. Pareceu-lhe que vislumbrava o inferno. Então alguém que se parecia com um soldado se aproximou dele e apontou o que parecia uma baioneta estranha... e a arma falou e de sua boca saíram fogo e trovões. Por algum acaso do destino, todos os projéteis seguiram na direção de sua testa e parecia que ela estava sendo perfurada por milhares de abelhas.
Quando abriu o olho, Agostinho percebeu que na verdade, o que atingia sua testa eram gotas de água. Parecia estar havendo uma tempestade lá fora e o navio balançava como um homem bêbado.
O padre olhou para o lado e o que viu era mais negro que seus mais obscuros pesadelos. O navio jogava de um lado a outro, correndo o risco de jogá-lo de seu beliche ao chão.
¨Onde estará o inquisidor?¨, perguntou-se. Olhando pela janela, pensou vislumbrar uma silhueta contra a fina luz que entrava pelo vidro. Então um raio riscou o céu.
Milton estava sentado em uma cadeira. Seu rosto parecia sereno, mas suas mãos se inclinavam em garras sobre o encosto da cadeira.
- O que... o que está acontecendo, senhor?
- É o diabo lá fora. Pode ouvi-lo?
Agostinho aguçou os ouvidos. Não, não conseguia ouvir o diabo. Tudo que chegava até ele era o som estrondoso da tempestade e o estalar da madeira. E o trovão, o terrível trovão, sempre atrasado em relação à luminosidade. Seria essa a voz do diabo? Seria uma voz atrasada em relação à luz de Deus? Mas por que então essa luz era tão terrível? Tão amedrontadora?
- Eu... não sei se ouço...
- Abra seus ouvidos, abra seus olhos. O diabo está aqui... é possível sentir.
- Aqui, senhor?
- Sim, e em todo o canto. Pode sentir o diabo?
Houve um silêncio entre os dois, cortado pelo som da tempestade. Agostinho não podia ver o rosto de seu superior, mas parecia deduzir que ele estava em jubilo...
Um tranco sacudiu o navio, provavelmente uma onda, e os marinheiros gritaram lá fora. Um deles clamava por Deus, mas Deus parecia não ouvir suas preces.
O desespero e a tempestade duraram a noite inteira. Agostinho segurou-se em sua cama, rezando aos céus para que a tempestade acabasse e para que a ânsia de vômito o abandonasse. Mas um outro lado seu que ele não conhecia parecia se divertir com o episódio, como se fosse possível alegrar-se com a tragédia.
A noite não passou, arrastou-se. De tempos em tempos, o jovem padre cochilava e, ao acordar, imaginava que tudo havia acabado, só para perceber desolado que o véu da noite e a fúria da tempestade não haviam se esvaecido.
Muito, muito tempo depois, a luz começou a entrar pela pequena janela. Agostinho acordou e olhou para ela. O velho ainda estava lá, acordado, e o rapaz impressionou-se com isso. Não teria dormido uma única vez?
Quando o dia surgiu completamente, seu superior ordenou:
- Vamos subir e ver se nos servem uma refeição!
Saíram do quarto e atravessaram o corredor da terceira coberta. Havia água e umidade por todos os lados. Ninguém abrira a porta de suas cabines e não parecia haver movimento lá em cima. Passaram pela cabine do capitão e Agostinho imaginou ouvir gemidos vindos lá de dentro.
Subiram até o tombadilho. Um homem cego estava sentado sobre um monte de cordas. Imóvel, ele fitava o horizonte com seus olhos sem vida. No outro extremo, uma cena terrível. Um marinheiro jazia inerte contra a balaustrada, um canhão enterrado em seu peito. Sua cabeça estourada exalava vísceras.
Inicialmente Agostinho achou que ele batera a cabeça contra a madeira, mas percebeu que não havia sangue ali. Olhando para o outro lado, ele percebeu o sangue no bastão do homem cego e teve vontade de vomitar.
Surpreendentemente, o marinheiro emitiu um som agudo e arfou. Estava nos últimos estertores de morte. Sem cuidar de seu superior, o jovem missionário aproximou-se e ministrou a extrema-unção ao moribundo. Nisso dois rapazes subiram ao convés. Um deles era loiro e tinha feições femininas e rosto angelical. O outro era um enérgico moreno, de sobrancelhas grossas.
- Meu rapaz, pode nos dar um instante? – disse Milton.Quando virão nos servir a comida? Sou um inquisidor...
O rapaz loiro olhou para os dois e seus olhos crisparam. Havia ódio e medo em seu olhar. Ele parecia a pronto a atacá-los e Agostinho não entendeu porque. Mas o outro o puxou.
- Selvagens! Vão queimar no fogo do inferno!
Agostinho olhou à volta. Queimar no fogo do inferno não parecia uma ameaça distante. Era muito concreta e real. Estavam perdido no meio do nada, o navio semi-destruído, talvez sem água ou comida.
Não, o inferno era ali mesmo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Capítulo 1


PARTE 2

- Contra-mestre! Precisamos do mestre-calafate!
- Hum... – fez o outro.
- Há um buraco no casco, na coberta inferior.
Em contraste com a urgência dos dois marinheiros, o contramestre parecia não se interessar pela informação.
- Ouvi alguém falar do mestre-calafate. Dizem que ele estava no bote destroçado pelas ondas. Pode ter sido assim que ele morreu... ou pode ter sido de outra forma...
- Por favor, senhor, o navio está fazendo água... sabe se algum ajudante dele sobreviveu?
- Não, não sei. Vocês podem perguntar por aí, mas até terem feito isso, o navio já estará no fundo e todos nós no inferno.
O contramestre riu, sarcástico.
- Mas talvez os dois garotos queiram salvar suas almas das garras do diabo. Arranquem uma parte do velame e arranjem um pouco de madeira pequena. Creio que terão de consertar isso vocês mesmo...
- Mas... isso é serviço para profissionais.... – objetou Pedro.
- Agora vocês são os profissionais. Se é tão importante assim, terão que aprender a fazê-los vocês mesmo...
Pedro abanou a cabeça, mas Jean Pierre o puxou.
- Vamos, temos que tentar!
Percorreram o convés. Havia muito velame e pedaços de madeira espalhados pelo chão, restos do choque com o animal estranho na noite anterior.
Pegaram o que precisavam e desceram para a primeira coberta. A água já dominava o compartimento e provavelmente já estragara boa parte da comida.
Num ímpeto, Jean Pierre avançou com a lona do velame, tentando cobrir o buraco, mas a vazão da água era muito forte, e ele não resistiu.
- Não dá! Não vamos conseguir!
- Talvez seja possível se calçarmos a lona com madeira e batermos nela... – sugeriu Pedro.
Fizeram isso. Envolveram um pedaço comprido de madeira com lona e prepararam um pedaço maior e mais pesado para servir de martelo. O resultado foi colocado sobre a vazão da água.
- Temos que ser rápidos. Quando eu falar!
A um sinal, os dois empurraram a madeira e Pedro martelou-a contra o buraco. A pressão era forte, mas aos poucos foi cedendo aos esforços. Em pouco tempo o buraco estava tampado.
- Isso não ficou bom, mas serve. – disse Jean Pierre, e sentou-se no chão molhado, exausto com o esforço.
Pedro sentou-se ao seu lado. Não tinham tido tempo para pensar na sua situação e ali, sentados, puderam finalmente refletir.
- Manuel disse que estamos perdidos! – disse Jean-Pierre.
- Você talvez esteja perdido. – atalhou Pedro. Eu estou com fome. Vou pegar um pouco de queijo e vinho.
Jean-Pierre segurou seu braço:
- A comida não vai durar para sempre...
- Então é melhor aproveitar enquanto ainda existe comida...
Disse isso e levantou-se. Foi até a despensa e retirou de lá uma garrafa de vinho. Vinho bom, dos oficiais, não a lavagem que bebiam normalmente. Depois pegou um queijo, aquele que lhe pareceu melhor e subiu. Jean-Pierre foi com ele, mas não subiu ao convés. Foi pelo corredor na direção dos camarotes da proa.
Como imaginou, a porta estava aberta.
A mulher de branco estava sentada em uma cadeira, olhando pela janela. Seus longos cabelos negros deslizavam por seus ombros. As mãos estavam pousadas sobre o colo.
- Trouxe vinho e queijo para você. – disse Jean Pierre.
Deu alguns passos e colocou a garrafa e o queijo sobre uma mesinha, ao lado da cadeira.
- Vai precisar de uma faca? Um copo talvez? Que idiota eu sou... não trouxe um copo!
A mulher não respondeu. Somente olhou para ele com olhos perdidos. Eram olhos azuis, tão profundos e perigosos quanto o mar.
- Je parle Française? – indagou Jean Pierre, mas a mulher não respondeu novamente. Apenas continuou olhando com seu olhar perdido.

domingo, 23 de novembro de 2008

CAPÍTULO 1


No qual uma tempestade quase destrói um navio; um tesouro é descoberto e depois escondido; um assassinato é cometido e o vinho dos oficiais é desperdiçado.

PARTE 1


Começou como um trovão.
Algo estava acontecendo. Algo terrível. Algo que nenhum deles jamais poderia sequer imaginar.
Os marinheiros entraram em pânico e fugiram da cabine do capitão. O terror estava em seus olhos.
“O que está acontecendo?”, indagava um.
“O fim do mundo! Provocamos o fim do mundo!”, gritava outro.
“Vamos todos morrer”, ajuntava outro.
As águas lambiam o convés como se fossem línguas do diabo, arrastando homens rumo às profundezas do mar.
A pobre embarcação virava de um lado a outro, como que sacudida por uma mão invisível. Os poucos passageiros arregalavam seus olhos, tentando compreender o que estava acontecendo. Alguns rezavam para seus deuses, agarrando-se a um fio de esperança. Outros choravam em desespero.
Lá em cima, os marinheiros não sabiam o que fazer. Havia coisas a serem providenciadas, ordens a serem dadas, mas ninguém se lembrava quais eram. O contramestre estava cego e o capitão desaparecera no útero do navio, procurando um lugar seguro para esconder seu precioso tesouro.
Em outro lugar, um homem estava sendo morto.
Um canhão se desprendeu e arrastou consigo um marinheiro, prensando-o contra o parapeito.
Um grupo de marinheiros pegou um bote e tentou descê-lo, mas, quando se acomodavam na pequena embarcação, uma onda maior destroçou a madeira, jogando-os no mar revolto.
Então, no meio da tempestade, um ronco se fez ouvir. Os poucos que ainda estavam vivos olharam para cima. Alguma coisa se aproximava por entre as nuvens. Parecia um pássaro, uma águia feroz e faminta avançando e gritando seu ronco tenebroso.
Mas era muito, muito maior que uma águia.
O animal alado passou rápido e chocou-se contra o mastro real, quebrando-o. O navio quase soçobrou com o impacto, mas a mesma força invisível que antes parecia sacudi-lo segurou o impacto e manteve a estrutura na posição.
Um marinheiro se ajoelhou sobre o tombadilho e começou a rezar. Como que em resposta às suas preces, uma onda o arrastou na direção da boca desdentada do mar.
Foi uma dádiva, pensariam depois os sobreviventes. Ali, sobreviver seria o pior.
A tempestade açoitou o navio durante toda a noite e os marinheiros desistiram de tentar manobrar ou fazer o que quer que fosse. Aos poucos, cada um se escondeu em um canto e começou a implorar para que aquele inferno tivesse fim. Muitos vomitavam.
Na manhã seguinte, o tempo acordou como se nada tivesse acontecido.
O navio deslizava por um mar calmo e sem vento. Lá em cima no céu, não havia uma única nuvem e o azul dominava tudo.
Timidamente, os sobreviventes começaram a aparecer no convés, um a um.
Pedro, um marinheiro novato, foi um dos primeiros a subir. Seus olhos se esbugalharam ao olhar para o lado. Lá estava João, o tronco esmagado pelo canhão.
- João! Você ainda está vivo! Fale comigo!
- O canhão... o canhão se soltou...
- Sente dor?
- Ele está morto! Se não estiver, dê um tiro nele!
Pedro olhou por cima dos ombros. Era Jorge, o contramestre.
- Ele está vivo! Está vivo! Podemos salvá-lo!
O contramestre riu, seus olhos perdidos na imensidão do mar.
- Rapaz, posso estar cego, mas sei quando alguém está morto... atire nele...
Pedro abanou a cabeça, em sinal de não.
- Se fosse assim, então talvez fosse melhor matar você também... está cego...
O contramestre riu, sarcástico.
- Dos que sabem navegar, só deve ter sobrado eu. Mate-me e irá ficar perdido por semanas, talvez meses, nessa imensidão do mar.
Pedro se levantou, chorando.
- Isso é vida? Isso é vida?
- Não, isso é morte.
O contramestre pegou o bastão que trazia consigo, e que agora servia como muleta, e estourou com ele a cabeça do marinheiro vitimado pelo canhão.
- Isso é morte, rapaz. Acostume-se com isso.
O rapaz afastou-se com lágrimas nos olhos e deixou o contramestre rindo atrás de si. Ao descer, deparou-se com Jean Pierre.
- O que houve? – perguntou o francês.
- O carrasco acha que ainda está no comando...
- Ele...
- Ele matou João.
Jean Pierre falou, parecendo profético:
- Seremos os próximos.
Uma mulher subiu ao convés. Usava um vestido branco, tão alvo quanto a cor de sua pele. Como contraste, seus cabelos eram muito pretos e grandes. Seu olhar, azul, era perdido, como se não compreendesse o que estava acontecendo. Ela aproximou-se da balaustrada, pousou suas mãos macias sobre a madeira e ficou algum tempo assim, imóvel, como se não soubesse o que fazer. Depois voltou para seu camarote sem dizer uma única palavra.
Jean-Pierre olhou-a interessado.
- Pedro, quem é essa mulher? Não a tinha visto ainda...
- É uma passageira. Chama-se Helena. Deve ter dinheiro, pois conseguiu um camarote só para ela, mas também parece ser doida, ou algo assim. Dizem que é francesa, mas nunca a ouvi dizer uma só palavra...
- Talvez seja muda...
- Talvez. E talvez eu esteja com fome... será que a tempestade danificou os mantimentos?
- Só há uma forma de saber...
- Vamos!
Os dois desceram a escada até a coberta inferior.
Havia um cheiro forte de vinho lá. Um marinheiro, sentado no chão, bebia vinho diretamente da garrafa e cantava uma música sem sentido. Era um homem gordo e baixinho, com longos bigodes e orelhas grandes. Ali, sentado no chão, parecia uma criança brincando com a comida.
Pedro aproximou-se dele.
- Manuel, o que está fazendo?
- Estou comemorando minha morte. Beba comigo, antes de chegarmos no inferno. Ah, Maria, Maria eu te amava tanto. Só queria ter agora os seus beijos... - disse isso e jogou a garrafa contra o casco, fazendo com que ela estalasse e quebrasse, derramando o líquido rubro pelo chão.
- O vinho dos oficiais! – lamentou Jean Pierre.
- Vamos brindar à nossa morte! – soluçou Manuel.
- Nós ainda não estamos mortos! – declarou Pedro. Vamos, levante-se. Você ainda está vivo e inteiro. Há outras pessoas em situação pior. Talvez você possa ajudar. Vá, suba. O ar da manhã vai te fazer bem...
Manuel olhou-o, intrigado:
- Bem... vai me fazer bem?
- Sim. Agora vá!
O pobre marinheiro saiu capengando, escorregando no vinho que ele mesmo havia derramado.
Os dois outros começaram a inspecionar os mantimentos. Um dos barris de água havia rachado e quase todo o líquido se esgotara dele. A água danificara uma grande quantidade de biscoitos, mas ainda havia queijo e os animais, muitos dos quais ainda se encontravam em suas gaiolas. Muitos haviam fugido, e era possível ouvir o cacarejar de uma galinha aqui e ali. Havia também grãos e trigo, que seriam levados para a colônia, e frutas, que haviam sido trazidas a bordo no último porto.
Pelo menos metade da comida ainda estava aproveitável.
Pedro coçou o queixo:
- Se não ficarmos muito tempo à deriva, a comida talvez seja suficiente, quanto à água...
Jean Pierre parecia não prestar atenção. Aguçando os olhos, ele tentava a todo custo inspecionar as paredes do navio.
- Estão úmidas.
- É o tonel de água que arrebentou, mais o tonto do Manuel com o vinho...
- Não. Acho que há um buraco no casco.
- Um buraco, no casco?
- Em algum lugar, provavelmente nesta mesma coberta...
Foram seguindo o faro de Jean Pierre. Finalmente encontraram um rombo. Uma parte da carga se desprendera e arrombara a madeira. O buraco era pequeno, mas a vazão era contínua.
- Se continuar assim, vai afundar o navio...
- No mínimo vai danificar a comida...
- O mestre-calafate! Ele vai saber como consertar isso!
Subiram correndo para o convés.
Dois homens os pararam. Estavam vestidos como padres, e um deles era velho, mas enérgico. Era baixo, atarracado, mas tinha mãos magras, que pareciam garras. Embora não fosse muito gordo, as bochechas formavam dois volumes estranhos, caindo pelos lados do rosto. Ele tinha um olhar enfezado, de poucos amigos. O outro era bem mais jovem, alto e magro. Tinha cabelos castanhos anelados.
- Meu rapaz, pode nos dar um instante? – disse o homem mais velho.Quando virão nos servir a comida? Sou um inquisidor indo...
Jean Pierre olhou enojado. Não gostava de padres. Ia responder à altura, mas foi interrompido por Pedro:
- Vamos. Precisamos tampar o buraco urgente! Venha!
Jean Pierre deixou-se arrastar. Olhou para trás, por cima dos ombros e ouviu o homem mais velho dizer:
- Selvagens! Vão queimar no fogo do inferno!
Não, queimar no fogo do inferno não era uma ameaça para Jean Pierre. Ele já passara por isso.
- Ei, atenção aqui! Temos que achar o mestre! Ele precisa consertar o buraco. – ralhou Pedro.
Olharam para todos os lados, mas não encontraram ninguém, até que deram de cara com o contramestre sentado em um amontoado de cordas, olhos sem vida fixos no horizonte, as mãos de dedos largos apoiadas no bastão. Ele estava ali, quase como uma estátua, sem se mexer, aparentemente desligado do mundo, mas, por outro lado, parecendo atento a tudo que acontecia.

Apresentação

Galeão é uma obra de fantasia histórica que se passa em algum lugar do Atlântico, no século XVII. Depois de uma noite de terror, em que algo terrível acontece, os sobreviventes descobrem que estão em um navio que não pode ser governado e repleto de mistérios. A comida está sumindo, alguém está cometendo assassinatos, uma mulher é violentada e o tesouro do capitão parece ter alguma relação com todo o tormento pelo qual estão passando.
Além da narrativa do navio, são mostrados flash backs dos personagens, revelando que todos eles têm algo a esconder.
Galeão mistura vários temas da ficção fantástica e outros gêneros: os duplos de Edgar Alan Poe, o Aleph de Borges e outros, misturados com uma trama policial, já que um psicopata parece estar agindo entre os sobreviventes. A história torna-se, assim, um quebra-cabeça a ser desvendado pelo leitor.