terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Capítulo 1


Parte 3
Agostinho acordou no meio da noite, sobressaltado. Ele sonhara com coisas estranhas. Monstros de ferros passavam ao seu lado emitindo um piado agudo e correndo em uma linha reta. Pássaros barulhentos avançavam pelo ar. Havia fumaça, barulho e explosões. Pareceu-lhe que vislumbrava o inferno. Então alguém que se parecia com um soldado se aproximou dele e apontou o que parecia uma baioneta estranha... e a arma falou e de sua boca saíram fogo e trovões. Por algum acaso do destino, todos os projéteis seguiram na direção de sua testa e parecia que ela estava sendo perfurada por milhares de abelhas.
Quando abriu o olho, Agostinho percebeu que na verdade, o que atingia sua testa eram gotas de água. Parecia estar havendo uma tempestade lá fora e o navio balançava como um homem bêbado.
O padre olhou para o lado e o que viu era mais negro que seus mais obscuros pesadelos. O navio jogava de um lado a outro, correndo o risco de jogá-lo de seu beliche ao chão.
¨Onde estará o inquisidor?¨, perguntou-se. Olhando pela janela, pensou vislumbrar uma silhueta contra a fina luz que entrava pelo vidro. Então um raio riscou o céu.
Milton estava sentado em uma cadeira. Seu rosto parecia sereno, mas suas mãos se inclinavam em garras sobre o encosto da cadeira.
- O que... o que está acontecendo, senhor?
- É o diabo lá fora. Pode ouvi-lo?
Agostinho aguçou os ouvidos. Não, não conseguia ouvir o diabo. Tudo que chegava até ele era o som estrondoso da tempestade e o estalar da madeira. E o trovão, o terrível trovão, sempre atrasado em relação à luminosidade. Seria essa a voz do diabo? Seria uma voz atrasada em relação à luz de Deus? Mas por que então essa luz era tão terrível? Tão amedrontadora?
- Eu... não sei se ouço...
- Abra seus ouvidos, abra seus olhos. O diabo está aqui... é possível sentir.
- Aqui, senhor?
- Sim, e em todo o canto. Pode sentir o diabo?
Houve um silêncio entre os dois, cortado pelo som da tempestade. Agostinho não podia ver o rosto de seu superior, mas parecia deduzir que ele estava em jubilo...
Um tranco sacudiu o navio, provavelmente uma onda, e os marinheiros gritaram lá fora. Um deles clamava por Deus, mas Deus parecia não ouvir suas preces.
O desespero e a tempestade duraram a noite inteira. Agostinho segurou-se em sua cama, rezando aos céus para que a tempestade acabasse e para que a ânsia de vômito o abandonasse. Mas um outro lado seu que ele não conhecia parecia se divertir com o episódio, como se fosse possível alegrar-se com a tragédia.
A noite não passou, arrastou-se. De tempos em tempos, o jovem padre cochilava e, ao acordar, imaginava que tudo havia acabado, só para perceber desolado que o véu da noite e a fúria da tempestade não haviam se esvaecido.
Muito, muito tempo depois, a luz começou a entrar pela pequena janela. Agostinho acordou e olhou para ela. O velho ainda estava lá, acordado, e o rapaz impressionou-se com isso. Não teria dormido uma única vez?
Quando o dia surgiu completamente, seu superior ordenou:
- Vamos subir e ver se nos servem uma refeição!
Saíram do quarto e atravessaram o corredor da terceira coberta. Havia água e umidade por todos os lados. Ninguém abrira a porta de suas cabines e não parecia haver movimento lá em cima. Passaram pela cabine do capitão e Agostinho imaginou ouvir gemidos vindos lá de dentro.
Subiram até o tombadilho. Um homem cego estava sentado sobre um monte de cordas. Imóvel, ele fitava o horizonte com seus olhos sem vida. No outro extremo, uma cena terrível. Um marinheiro jazia inerte contra a balaustrada, um canhão enterrado em seu peito. Sua cabeça estourada exalava vísceras.
Inicialmente Agostinho achou que ele batera a cabeça contra a madeira, mas percebeu que não havia sangue ali. Olhando para o outro lado, ele percebeu o sangue no bastão do homem cego e teve vontade de vomitar.
Surpreendentemente, o marinheiro emitiu um som agudo e arfou. Estava nos últimos estertores de morte. Sem cuidar de seu superior, o jovem missionário aproximou-se e ministrou a extrema-unção ao moribundo. Nisso dois rapazes subiram ao convés. Um deles era loiro e tinha feições femininas e rosto angelical. O outro era um enérgico moreno, de sobrancelhas grossas.
- Meu rapaz, pode nos dar um instante? – disse Milton.Quando virão nos servir a comida? Sou um inquisidor...
O rapaz loiro olhou para os dois e seus olhos crisparam. Havia ódio e medo em seu olhar. Ele parecia a pronto a atacá-los e Agostinho não entendeu porque. Mas o outro o puxou.
- Selvagens! Vão queimar no fogo do inferno!
Agostinho olhou à volta. Queimar no fogo do inferno não parecia uma ameaça distante. Era muito concreta e real. Estavam perdido no meio do nada, o navio semi-destruído, talvez sem água ou comida.
Não, o inferno era ali mesmo.

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