quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Capítulo 2


Parte 3 - Pedro
Pedro estremeceu enquanto o pai se aproximava da porta. Não era normal que recebessem vistas àquela hora.
- Já estou indo. Calma que já estou indo. – disse o pai, arrastando os pés.
A porta abriu com um rangido. Uma figura enorme apareceu do outro lado. Pedro achou que fosse um monstro, ou um corcunda, e segurou nas mãos da mãe. Depois percebeu que, na verdade, era um homem com uma mala às costas. Vestia uma capa longa e preta e tinha um grande chapéu de couro, cujas abas desciam sobre seu rosto. Era um homem alto, forte, com uma barba rala e olhos azuis.
- Dá licença? Posso entrar? Sou um boticário de passagem por essas bandas e procuro pousada. Posso pagar por uma dormida e um pouco de comida. Já está começando a chover lá fora.
De fato, sua vestes já estavam úmidas e o chapéu se encurvara sob o peso leve de um pouco de água.
- Você nos deu um susto, homem. Não somos acostumados a receber visitas a essa hora.
- Eu não incomodaria, não fosse a chuva. Só peço um pouco de comida e lugar pra dormir.
O pai grunhiu, desconfiado:
- Só temos uma esteira.
- Durmo no chão, se me arranjar um pouco de palha.
- Pode dormir com o menino, então. Mulher, sirva um pouco de sopa para o homem. Aceita sopa?
- Quem sou eu para recusar? Num clima desses, uma sopa é tudo que um cristão pode pedir.
- Temos um pouco de vinho também. Não é muito, e não é bom. Vinho de pobre, parece lavagem, mas serve para matar a sede e é melhor que água, pois não dá doença.
- Meu senhor, eu não sei como me desculpar por estar lhe causando esse incômodo.
O pai grunhiu de novo, mas dessa vez foi menos severo. Estava começando a simpatizar com o forasteiro.
- Mal posso agradecer toda essa atenção. Só o que posso fazer é lhe deixar algumas moedas. Ou então, se quiserem, algum produto.
- Então o senhor é boticário? Nunca ouvi falar de boticário que andasse por aí, assim.
- Meu senhor, meu senhor... eu não sou homem de ficar parado. Não há lugar no mundo para mim, senão andando por esse mundão a fora, vendendo meus remédios e mais outras coisas que o senhor possa vir a precisar... – respondeu o forasteiro, sorvendo a sopa com grande barulho. Ah, mas essa sopa é um manjar dos deuses! O senhor me enganou, senhor...
- Sebastião. Meu nome é Sebastião. O senhor está dizendo que eu lhe enganei?
- Sim, isso mesmo. Disse que o vinho era lavagem, mas esse vinho é bom. Posso dizer isso porque já provei os mais variados vinhos, até mesmo os do novo continente. Tão bom quanto a sopa.
Com esse elogio, ele conquistou a atenção e a simpatia de todos. A mãe sentia-se orgulhosa por ter feito a sopa, e o pai por ter fabricado o vinho. Sempre acreditara que o vinho que produziam no sítio era ruim, coisa de camponeses, mas ali estava um homem experiente, que rodara o mundo e que elogia o seu vinho. O seu vinho!
- Então o senhor já foi ao novo mundo.
O forasteiro balançou a cabeça, afirmativamente.
- Fui sim, minha senhora. Já percorri quase todo o mundo conhecido.
Disse isso e tirou da roupa uma trouxinha amarrada ao pescoço por uma cordinha e beijou-a:
- Fui para lugares que a senhora nem imagina. Sempre que a proteção de nosso senhor, Jesus Cristo.
- O que é isso? – perguntou o pai.
- Isto? É um patuá! Fizeram para mim nas ilhas, antes de chegar ao Brasil.
- Coisa de negros...
- Aí é que o senhor se engana. É catolicíssimo esse patuá. Trago aqui dentro, nessa trouxinha de couro, uma oração pedindo a proteção de Cristo e Nossa Senhora... enquanto estiver com ele, estou de corpo fechado para todo o mau. Não há tiro que me acerte ou faca que me fure.
- Que oração é essa?
- Não posso dizer minha senhora, ou perco a proteção.
- Então o senhor deve guardar isso muito bem.
- Sem dúvida, trago debaixo da camisa, perto do peito. Nunca me separo desse patuá.
Pai e mãe ficaram refletindo sobre as maravilhas desse beato patuá.
- Mas fale, fale um pouco sobre o novo mundo.
- Oh, minha senhora, é a maravilha das maravilhas. Dizem que existe uma cidade em que todas as coisas são feitas de ouro. Tudo, até as jarras de água. Tudo feito de ouro. Chama-se Eldorado, essa cidade. Alguns falam que Eldorado seria o governante dessa cidade, um homem com tanto ouro no corpo que é impossível olhar para ele de dia, por causa dos raios do sol. Nessa cidade até os penicos são feitos de ouro!
O pai coçou a cabeça:
- Um penico de ouro?
- É o que ouvi dizer.
- Mas o senhor esteve nessa cidade?
- Não, meu senhor. Estar, nunca estive. Mas posso garantir que no Novo Mundo existe tanto ouro que até o mais pobre dos homens vira um rei do dia para noite. Até um guardador de porcos.
O pai cuspiu no chão.
- Até um guardador de porcos?
- Esteja certo disso. É uma terra de riquezas. Mas não é todos que querem ir para lá. Há índios selvagens, que comem gente.
Nisso a mãe se benzeu:
- Deus me livre e guarde.
- Eu nunca tive medo, pois tenho o meu patuá, mas o calor, não há patuá que livre a gente do calor. É um calor dos infernos. E o povo de lá têm costumes estranhos.
- Costumes estranhos?
- Sim, há até os que tomam banho todas as semanas!
- Cruz-credo! – fez a mãe.
- Costume de judeus! – concordou o pai.
- Estou lhe dizendo. São gente estranha, selvagem. Por sorte, nossos sacerdotes estão catequizando aquela gente. Mas agora que já terminei de comer, talvez queiram ver alguma coisa.
O homem soltou um arroto, levantou-se e foi pegar seu baú. Era um baú diferente, que se abria em quatro, revelando vários objetos presos por tiras de couro.
- Aqui tenho as mais variadas coisas, para as mais variadas necessidades. Vejam.
Pedro estendeu a mão e pegou em um bloco quadrado, de matéria macia. Parecia gordura, mas era mais sólido e tinha um cheiro estranho.
- O que é isso, senhor?
O pai deu-lhe um tapa na mão, reprimindo-o.
- Não mexa em nada, seu peste!
- Obrigado, senhor. Essa substância é cara e preciosa demais para ser tocada por crianças. Mesmo assim, irei satisfazer a curiosidade desse rapaz. Isto aqui, meu garoto, é sabão.
- Sabão?
- Sim, minha senhora. Uma substância tão cara que só vendo para condes e marqueses. Sabão, uma substância capaz de limpar qualquer coisa. Uma verdadeira preciosidade!
O olhar da mãe encheu-se de brilho:
- O senhor não tem medo de andar com isso por aí, por essas estradas perigosas?
- Minha senhora, meu patuá é capaz de me salvar de qualquer coisa. Não temo nada, a não ser a Deus! Estando com a proteção dele, não temo nada.
O pai balançou a cabeça:
- Muito certo, muito certo.
- E o que é esse vidrinho?
- Minha senhora, por favor, deixe isso no lugar. Isso é veneno.
- Veneno? Para que o senhor anda com veneno? E como o senhor sabe que é veneno? Os vidros são todos iguais.
- Minha senhora, se eu soubesse ler, escreveria veneno nesse frasco, mas não sei ler, então memorizei o lugar de cada um desses frascos. Se trocarem de lugar, posso vender veneno no lugar de um remédio.
- E por que o senhor anda por aí com veneno?
- Minha senhora, um grande alquimista disse que a diferença entre o remédio e o veneno é a quantidade. Provavelmente a senhora não sabe, mas muitos remédios são feitos de veneno. Mas em pequena quantidade. Sim, eu tenho grandes maravilhas aqui. Diga, meu nobre senhor... o que lhe incomoda? Com que fórmula mágica eu poderei pagar minha estada aqui?
O pai pareceu constrangido.
- Bem, a mulher diz que... como vou dizer... estou precisando, sabe?
- Vamos, diga o que o atormenta. Tenho remédio para todos males. Se for dor de dente, também posso arrancar alguns...
- Não, não é dente...
- Seria uma febre intermitente... tenho aqui...
- Não, não é febre... é algo mais...
- Vejo que o tema o incomoda. Seria um furúnculo, talvez?
- Não, nada de furúnculos.
- Doença de pele?
- Não, nem furúnculo, nem febre, nem doença de pele, nem tosse... é pum! Pronto, eu já disse: eu solto puns! Por mim, não me incomoda em nada, mas essa mulher diz que isso é doença, que tenho que me tratar... sabe como são as mulheres!
- Ah, o senhor sofre de gases! Por que não disse logo? Tenho aqui o remédio certo!
O pai pegou o vidrinho, desconfiado.
- Esse vidrinho vai curar os meus gases?
- O vidrinho não, mas o que tem dentro dele, sim. E pense como os franceses: são nos menores frascos que guardam os melhores perfumes.
- Se o senhor diz. Então está paga a sua estadia.
- Com uma singela refeição pela manhã, espero...
O pai olhou para a mãe e ela retornou o olhar, severa.
- Está bem. Amanhã o senhor come e vai embora...
Dito isso, levantou-se e anunciou que iam dormir. Não sabia o que lhe aconteceria.

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