sábado, 6 de dezembro de 2008

CAPÍTULO 2


No qual descobrimos algo mais sobre Pedro; um cachorro é morto; um estranho boticário bate à porta; os sobreviventes brigam entre si; um remédio faz estranho efeito e o leme é perdido.

Parte 1 - Pedro

Pedro lembrava-se de sua infância. Lembrava-se dos campos, da vida árdua, do cuidar das ovelhas.
Ele era ainda muito pequeno, e já trabalhava, cuidando as ovelhas. Seu pai trabalhava nos campos, plantando e colhendo, sol a sol. Tinham uma pequena roça, uma vaca, algumas galinhas e as ovelhas. Passavam quase que o dia todo na roça. A mãe levava comida para eles quando o sol começava a ficar mais forte.
- Meu pequeno Pedro. – dizia ela, acariciando o cabelo do menino, enquanto ele devorava a comida com as mãos. As lembranças eram antigas, como retratos que se apagam com o tempo, mas ainda assim Pedro conseguia, com grande esforço, rememorar o rosto da mãe, mas a imagem que vinha era sempre aquele quadro, ele olhando-a debaixo para cima, ele com as mãos sujas de gordura, e ela enorme, acariciando seu cabelo. Era uma imagem reconfortante.
- Coma tudo para ficar forte. – dizia ela, e ele comia tudo, lambendo o prato para não desperdiçar nem mesmo um único átimo da saborosa comida caseira.
À noite iam para casa e jantavam ao redor de uma mesa baixa, com um vela sobre uma garrafa. Era quando o pai contava as novidades.
- Mataram o cachorro do velho Alfredo. – disse o pai, limpando os lábios com as costas das mãos.
- Mataram o cachorro? Quem faria isso? Aquele cachorro já estava velho, deve ter morrido de velhice, meu marido.
- Não, mataram mesmo. Estriparam o bicho. O velho Alfredo me contou tudo, detalhe por detalhe. Ele acordou de manhã e chamou pelo bicho. Sabe como ele tinha amor naquele cachorro...
- Dizem que era um bom perdigueiro...
- Sim, por isso o vizinho o chamava de caçador. Coitado, ele acordava de manhã, saia pela porta, escarrava e chamava pelo cachorro. Isso antes de lavar o rosto ou comer alguma coisa. Era doido pelo bicho. Ele chamava e o bicho vinha, abanando o rabo. Mas ontem, ele chamou o caçador, mas ele não veio. Achou estranho, porque o bicho nem esperava ele chamar para aparecer. Se ele deixasse, dormia lá dentro...
- É surpreendente que ele não deixasse o cachorro dormir dentro de casa. Depois que ficou viúvo, o seu Alfredo ficou tão solitário...
- Ele se apegou ao cachorro. Dizia que os dois eram dois velhos, que tinham vivido o melhor da vida e que agora um fazia companhia para o outro. Mas estou me desviando da história. Como dizia, ele saiu pelo quintal, chamando pelo cachorro. Chamou aqui, chamou acolá, e nada do cachorro aparecer. ¨Eh, cachorro preguiçoso!¨, ele gritou, mas sabia que o cachorro não estava dormindo. Ele sempre acordava antes. Tinha que ter acontecido alguma coisa. Você já foi na casa do Alfredo e deve ter visto que tem um celeiro velho. Depois de procurar por toda o quintal, ele foi ver nesse celeiro. O cachorro estava lá.
- No celeiro? O cachorro dormiu no celeiro?
- Não. Deixa eu contar. O cachorro estava lá e estava gemendo. O vizinho pensou que ele estivesse morrendo, e chamou por ele. Estava muito escuro e o cachorro não respondia, só gemia. Ele abriu a porta e o celeiro se iluminou. O vizinho entrou, mas depois saiu vomitando.
- Vomitando?
- Sim. Ele vomitou até quase saírem as tripas. Depois criou coragem e entrou lá de novo. O cachorro estava deitado de barriga para cima, numa posição estranha. Havia um corte de cima a baixo, abrindo todo o peito e barriga dele.
- Meu bom Jesus!
- Alguém se deu ao trabalho de cortar o cachorro de cima a baixo... e não ficou satisfeito. Quem quer que seja o malvado, tirou o bucho do bicho. O bucho, o coração, o fígado... como um açougueiro, separando as carnes que vai dar para os pobres.
- Será que não foi o açougueiro? Já me disseram que eles fazem salsichas com carne de cachorro...
- Sei não. Se fosse o açougueiro, por que ele não levou a carne? Não, acho que foi maldade mesmo. Mataram bicho por matar. Sem mais nem mesmo. Só pelo prazer de matar...
- Ai, meu Deus, é o fim do mundo! Será que foi algum inimigo do seu Alfredo?
- E aquele velho lá tem inimigos? Não faz mal a uma mosca! Não, não foi nada disso... por mais que eu pense, não consigo pensar em outra coisa senão em maldade...
- Pode ser alguém querendo ficar com as terras do pobre. Matam o cachorro dele para assustar...
- Pois é. Pensei nisso. Pode ser. Vá saber.
Nisso bateram à porta.
- Quem será, a uma hora dessas?
Bateram de novo, insistentemente.
O pai se levantou.
- Vou abrir.
- Não, marido! Não abra!
- Deixe de besteiras, mulher... já vou abrir! Pare de bater!

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